Acórdão n.º 4/2009 de
14/10/2009
Uniformiza a jurisprudência sobre o prazo em que pode ser exigida a reposição nos cofres do Estado de quantias indevidamente recebidas pelo funcionalismo público a título de remuneração do trabalho de qualquer natureza, no sentido de que pode ser ordenada até ao limite temporal de cinco anos a contar do recebimento, sem haver lugar a aplicação do prazo estabelecido para a revogação de actos administrativos no artigo 141.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por força da norma de natureza interpretativa, introduzida pelo artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, que aditou o n.º 3 ao artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92
Processo n.º 1212/06 - Pleno da 1.ª Secção
Acordam, em conferência, no pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
Relatório
I - Jeni Maria Cunha Bettencourt Silva Vieira e outros 76 docentes com vínculo à Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação (DREER), todos identificados a fls. 1 e seguintes, intentaram no TAF do Funchal, nos termos dos artigos 112.º, n.os 1, alínea a), e 2, 120.º, n.º 1, alínea a), 58.º, n.º 2, alínea b), 10.º, n.º 3, 9.º e 12.º, n.º 1, todos do CPTA, providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho n.º 86/2005, de 1 de Agosto, da autoria do Secretário Regional da Educação da Região Autónoma da Madeira, publicado no JORAM, n.º 162, de 24 de Agosto de 2005, que ordenou aos dirigentes e docentes do ensino especial, em regime de acumulação na DREER, segundo o disposto nos artigos 1.º, 2.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 324/80, de 25 de Agosto, a reposição dos subsídios de especialização e de itinerância previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho, relativos aos anos de 2000 (período de Abril-Maio a Dezembro), 2001 e 2002, o que se traduziu para os requerentes na ordem de reposição das quantias reportadas na listagem constante do artigo 4.º da petição.
A entidade requerida deduziu oposição ao pedido, nos termos do articulado de fls. 348 e seguintes.
Por estar apenas em causa a legalidade do aludido despacho, e os requerentes informarem ir intentar a correspondente acção administrativa especial, o Sr. Juiz do TAF, entendendo estarem verificados, in casu, todos os pressupostos previstos no artigo 121.º do CPTA, decidiu antecipar a decisão sobre a causa principal, proferindo a sentença de fls. 371 e seguintes, pela qual anulou aquele despacho, que considerou ilegal por violação do artigo 141.º do CPA.
Esta sentença veio a ser confirmada, em sede de recurso jurisdicional, por Acórdão do TCA-Sul de 11 de Maio de 2006 (fls. 476 e seguintes).
Novamente inconformada com tal decisão, dela interpôs a entidade demandada recurso jurisdicional dirigido a este Supremo Tribunal Administrativo (mandado subir ao abrigo do artigo 150.º do CPTA), tendo este STA, por Acórdão de 21 de Setembro de 2006 (fls. 537 e seguintes), em sede de apreciação preliminar sumária, decidido não admitir o recurso excepcional de revista, por falta dos requisitos legalmente estabelecidos.
Notificada desta decisão, e após a baixa dos autos ao tribunal recorrido, veio a entidade demandada, pelo requerimento de fls. 550 e seguintes, contendo a respectiva alegação, interpor recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do artigo 152.º do CPTA, pedindo a revogação daquele acórdão do TCA-Sul.
Após notificação para o efeito, formulou as seguintes conclusões:
1) Uma primeira questão fundamental de direito em causa nos autos respeita à qualificação jurídica dos actos de processamento de vencimento e abonos aos funcionários públicos;
2) O acórdão sob recurso qualifica cada um dos sucessivos actos de processamento de vencimentos e de outros abonos, de per si, como verdadeiros actos administrativos;
3) Ao invés, o Acórdão de 9 de Outubro de 1997 considera tais actos como meramente materiais e mecânicos, de mera execução, por parte dos serviços e, referindo-se à «reposição de quantias indevidamente recebidas», conclui:
«[...] está em causa um mero acto de processamento de vencimentos, não havendo acto administrativo a definir a situação funcional da recorrente, fixou-se na ordem jurídica.»
4) Há, pois, como se vê, uma
contradição, ou oposição entre o decidido no acórdão recorrido e a decisão
adoptada no Acórdão do STA de 9 de Outubro de
5) Com o devido respeito, parece-nos bem mais acertada a decisão do aresto de 9 de Outubro de 1997, do que a proferida pelo acórdão recorrido;
6) Efectivamente, o artigo 120.º do CPA é claro quanto ao que sejam actos administrativos, referindo:
«Para os efeitos da presente lei, consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.»
7) Ora, o processamento dos montantes e abonos e as suas reposições são meros actos materiais e, como tais, não constituem actos jurídicos administrativos (v. Jéze, Carla Amado Gomes e outros);
8) Não houve assim, ao contrário do decidido pelo acórdão recorrido, revogação ilegal de actos administrativos constitutivos de direitos, mas correcções e reajustamentos materiais, âmbito em que se situa o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92;
9) A 2.ª questão fundamental de direito tem a ver com a inaplicabilidade da tese do caso decidido ou resolvido (artigo 141.º do CPA) como facto impeditivo da revogação de actos de processamento de abonos e vencimentos;
10) No acórdão recorrido decidiu-se que os processamentos dos vencimentos os vão firmando na ordem jurídica, como caso resolvido ou decidido, uma vez que, sendo constitutivos de direitos para os seus destinatários, só podem ser revogados no prazo de um ano (artigos 141.º do CPA e 58.º, n.º 2, do CPTA);
11) Entendimento diverso tem o Acórdão do STA de 12 de Maio de 1996, o qual, não obstante considerar que o processamento de vencimentos e abonos possa ser constitutivo de direitos, aspecto de que se discorda nos termos referidos, no entanto, entende haver, neste caso, um desvio ao prazo de revogação, não se lhe aplicando o artigo 141.º, n.º 1, do CPA, mas o prazo de cinco anos do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, no respeitante a reposições ao Estado, já que só as decisões judiciais importam caso julgado;
12) É neste sentido que, em nosso entender, deve ser proferido acórdão de uniformização da jurisprudência, no âmbito do presente recurso, por ser o que melhor salvaguarda o interesse público que a lei visou proteger;
13) Tal questão veio, aliás, a ser resolvida por norma interpretativa (Lei n.º 55-8/2004, de 30 de Dezembro - artigo 77.º), e, portanto, retroactiva, que introduziu um novo n.º 3 no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, do seguinte teor:
«3 - O disposto no n.º 1 não é prejudicado pelo estatuído pelo artigo 141.º do diploma aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro.»
14) Não poderá, pois, deixar de ser este o sentido e alcance das disposições citadas, a consagrar no acórdão a proferir, uniformizador da jurisprudência quanto às duas questões fundamentais de direito em oposição, entre o acórdão recorrido e os acórdãos citados;
15) Assim, deverá ser proferido acórdão fixando-se a seguinte jurisprudência:
a) Tanto os actos de processamento como os de reposição de vencimentos ou abonos a funcionários são meros actos de execução material, por parte dos competentes serviços, e não actos administrativos;
b) Em qualquer caso, entendidos ou não como actos administrativos, ainda que constitutivos de direitos, e tendo o artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 31 de Dezembro, aditado um n.º 3 ao artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/93, temos que o prazo previsto nesta disposição prevalece sobre o do artigo 141.º, n.º 1, do CPA;
c) Atenta a natureza interpretativa do n.º 3 do artigo 141.º do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 31 de Dezembro, tem a mesmo aplicação retroactiva.
II - Contra-alegaram os recorridos, nos termos a fls. 608 e seguintes, sustentando, em suma, que as duas questões de direito sobre que é invocada oposição devem ser decididas no sentido propugnado no acórdão recorrido, ou seja, no sentido de que o acto de processamento de abonos ou de vencimentos é um verdadeiro acto administrativo e não mero acto material, e que a sua não revogação pelo órgão competente, ao abrigo do artigo 141.º do CPA, os transforma em caso decidido ou caso resolvido, inviabilizando a sua revogação posterior.
Houve vista simultânea dos autos, nos termos do artigo 92.º do CPTA.
Fundamentação
A) Factos relevantes considerados pelo acórdão recorrido (deu por reproduzida a matéria de facto fixada na 1.ª instância):
1 - O Secretário Regional de Educação proferiu o seguinte acto administrativo:
«Secretaria Regional da Educação
Despacho n.º 86/2005
Considerando que no relatório n.º 31/04-FS, da Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas, com referência à auditoria orientada à gerência de 1999 da Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação, aquele Tribunal constatou, na conferência efectuada, e com base no Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho, que foram abonados ilegalmente subsídios de especialização e de itinerância aos docentes do ensino especial, em regime de acumulação, e, bem assim, aos que exerciam funções dirigentes, aspectos que vieram a ser (re)confirmados nos relatos das auditorias, orientadas às gerências de 2000, 2001 e 2002 daquela Direcção Regional.
Considerando ainda que para suporte daquele entendimento o Tribunal de Contas entendeu que os contratos de prestação de serviços invocados são celebrados com base no n.º 1 do artigo 9.º da Portaria n.º 169/91, segundo o qual a remuneração do pessoal docente especializado, em regime de acumulação, apenas tem por base o índice do escalão remuneratório do docente e que assim sendo, para além dos suplementos em causa não integrarem o índice do escalão remuneratório do docente, se estaria a pagar duas vezes pelo mesmo pressuposto, havendo uma duplicação de pagamentos o que configura um pagamento indevido.
Acresce ainda ter-se entendido também que, relativamente ao pessoal docente especializado com funções dirigentes que optou pela remuneração de origem e estando em causa o Decreto-Lei n.º 232/87, sendo esta uma lei especial que define expressamente que o direito aos suplementos de especialização e de itinerância depende do exercício efectivo de funções na educação e ensino especial de crianças e jovens, os valores processados a título de gratificação àqueles dirigentes, não estando enquadrados nestes pressupostos, deverão ser considerados pagamentos indevidos.
Os docentes interessados foram devidamente notificados, em cumprimento do princípio da audiência dos interessados, para dizerem o que se lhes oferecia sobre o assunto, nada tendo alegado de novo que possa alterar o sentido do nosso despacho de 28 de Março de 2005, com excepção das questões da relevação da reposição das quantias recebidas e da prescrição da obrigatoriedade de reposição das quantias indevidamente recebidas.
A primeira das questões suscitadas está resolvida já que, por despacho de 7 de Julho de 2005 de S. Exa. o Senhor Secretário Regional do Plano e Finanças, o pedido de relevação identificado foi indeferido, ao abrigo do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 324/80, de 25 de Agosto, diploma que se mantém em vigor (ao abrigo do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 57/2005, de 4 de Março), nos serviços e organismos da Administração Pública sem adesão plena, aos princípios definidos no Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho.
Nestes termos, e ainda com os fundamentos constantes no relatório do Gabinete de Estudos e Pareceres Jurídicos da Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação, determino o seguinte:
1 - Indeferir a realização das diligências complementares e junção de documentos requeridos pelos docentes interessados no procedimento de reposição, com excepção da questão da relevação da reposição das quantias recebidas, a qual já foi apreciada.
2 - Declarar a prescrição da obrigatoriedade de reposição das quantias indevidamente recebidas até ao mês de Abril ou Maio de 2000, consoante as datas de notificação dos devedores, correspondentes aos abonos das gratificações mensais de especialização e itinerância previstas nos n.os 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho, recebidos pelos docentes especializados no exercício da actividade docente em regime de acumulação e no exercício de funções dirigentes na Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação, ao abrigo do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 324/80, de 25 de Agosto.
3 - Ordenar, de acordo com o disposto nos artigos 1.º, 2.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 324/80, de 25 de Agosto, a reposição dos abonos identificados no ponto anterior, correspondentes às gerências de 2000 (período de Abril/Maio a Dezembro), 2001 e 2002.
4 - Ordenar que seja submetida à consideração de S. Exa. o Senhor Secretário Regional do Plano e Finanças os pedidos de reposição em prestações apresentados por docentes especializados em Educação e Ensino Especial.
5 - Ordenar à Senhora Directora Regional de Educação Especial e Reabilitação que, após a pronúncia sobre a reposição em prestações, se digne mandar notificar dos docentes visados para a dedução na coluna de descontos das folhas de vencimentos, sob a rubrica de receita orçamental 'Reposições não abatidas nos pagamentos', ou, se não for praticável, a entrega nos cofres do Tesouro por meio de guia, indicando-se em ambos os casos os montantes a repor.
6 - Ordenar à entidade processadora das gratificações mensais de especialização e itinerância, para restituição do IRS retido e entregue nos cofres do Estado, a elaboração e entrega de reclamação graciosa no Serviço de Finanças.
Secretaria Regional de Educação, 1 de Agosto 2005.»
2 - Em 2003, por despacho da directora regional de Educação Especial e Reabilitação da RAM, foi ordenado à Secção de Expediente e Pessoal a imediata suspensão do processamento das gratificações pagas, ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho, aos dirigentes e aos docentes da educação e ensino especializado em exercício de funções na DREER.
3 - Todos os AA acima identificados deixaram de receber a referida gratificação a partir daquela data.
4 - Todos os AA foram directa e pessoalmente notificados, durante os meses de Abril e Maio do corrente ano, pelo Exmo. Secretário Regional da Educação do projecto-decisão para reposição dos abonos correspondentes aos suplementos previstos no Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho.
5 - Nos termos das notificações feitas para reposição de abonos, os AA têm a repor cada um as quantias que a seguir se discriminam:
[...]
6 - Em face de tais notificações, todos os AA, no exercício do direito de audiência, previsto no artigo 100.º do CPA, enviaram a S. Exa. o Secretário Regional da Educação da RAM, a sua defesa assim fundamentada:
«tendo sido notificado, através
da Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação da SRE da RAM, do
despacho de S. Exa. o Senhor Secretário Regional de Educação de 28 de Março de
2005 ordenador da reposição dos abonos correspondentes às gratificações mensais
de especialização previstas nos n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87,
indevidamente recebidos pelos docentes especializados no exercício da
actividade docente em regime de acumulação, na DREER, no período das gerências de
1.º Salvo o devido respeito e melhor opinião as gratificações mensais sub judice não foram indevidamente recebidas pelos docentes especializados.
2.º Na verdade, não foram os docentes especializados que determinaram o processamento desses suplementos ou gratificações na respectiva folha de vencimentos.
3.º O pagamento de tais gratificações foi determinado superiormente na Secretaria Regional de Educação.
4.º A suspensão de tal pagamento das gratificações mensais a dirigentes da educação especial e a docentes em acumulação de funções foi determinada pela DREER, em Novembro de 2003, data a partir da qual deixou de processar nos vencimentos dos funcionários tais gratificações mensais de especialização e itinerância.
5.º O certo é que, até a presente data não foi emitido por qualquer órgão competente da Secretaria Regional de Educação um acto administrativo de revogação ao processamento nos vencimentos de tais gratificações.
6.º Ou seja, os docentes em acumulação de funções e os dirigentes não foram notificados de qualquer acto revogatório relativamente ao pagamento mensal das gratificações sub judice - a menos que, se entenda o acto de cancelamento como sendo um verdadeiro acto administrativo revogatório, todavia desacompanhado de fundamentação e do dever de reposição.
7.º Apenas, meramente tomaram conhecimento em Novembro de 2003 da suspensão do processamento das gratificações em apreço, ou seja, há mais de um ano atento os prazos de impugnação.
8.º É jurisprudência unânime do
nosso Supremo Tribunal de Justiça que os actos de processamento de vencimentos
ou outras remunerações, abonos ou gratificações não constituem simples
operações materiais, sendo actos jurídicos individuais e concretos, fixando-se
na ordem jurídica com força de caso decidido ou caso resolvido, se não forem
oportunamente impugnados - Acórdão do STA de 17 de Novembro de 1994; publicado
no apêndice ao Diário da República, de 18 de Abril de
9.º Durante o período a que respeita o mapa de reposição notificado não foi proferido qualquer acto administrativo de revogação ao processamento na folha de vencimentos das gratificações sub judice.
10.º Se admitirmos que o processamento das gratificações em apreço a dirigentes e a docentes em regime de acumulação são, face às normas dos n.os 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87, de 11 de Junho, actos inválidos, resulta indiscutível que, relativamente a cada acto jurídico individual e concreto de processamento mensal das gratificações sub judice, a sua revogação só pode ser feita no mesmo prazo do respectivo recurso contencioso ou até a resposta da entidade recorrida, prazo esse que é de um ano, nos termos dos artigos 28.º e 47.º da LPTA e 18º da LOSTA, leis vigentes até 1 de Janeiro de 2004.
11.º A Secretaria Regional da Educação ou qualquer outro órgão competente não revogaram o processamento das gratificações, admitindo a sua ilegalidade, que não se aceita, no prazo legal.
12.º É jurisprudência unânime do STA que a não revogação pelo órgão competente, ao abrigo do artigo 141.º do CPA e do artigo 28.º da LPTA, converte os actos, alegadamente ilegais, em actos válidos desde a sua origem.
13.º A validade dos actos ilegais advém da sua não revogação tempestiva, nem deles ter sido interposto recurso contencioso de anulação.
14.º O que se passou no caso do docente aqui respondente, dirigente e também com os seus colegas docentes em acumulação em funções, é que a Secretaria Regional de Educação e a DREER pagaram ao longo dos anos a que respeita o mapa de reposições, de modo livre e voluntário, as gratificações mensais de especialização e itinerância.
15.º Do mesmo modo a partir do dia 1 de Novembro de 2003 suspenderam voluntariamente tal processamento de gratificações.
16.º Assim, quer relativamente aos actos sucessivos de processamento das gratificações sub judice, quer à sua suspensão, estamos perante actos que se fixaram na ordem jurídica sob a forma de 'caso decidido' ou 'caso resolvido' em virtude da sua não impugnação atempada como já se relevou por qualquer dos intervenientes directos e pelo Ministério Público - não deixando aqui de lembrar que o próprio Tribunal de Contas não apresentou participação da ilegalidade ao MP para contencioso de anulação.
17.º Em suma, não há lugar a qualquer reposição na medida em que o processamento das gratificações ao longo dos anos constantes do mapa de reposições não foi objecto de revogação atempada e de impugnação contenciosa, são actos cujo eventual vício de ilegalidade foi sanado pelo decurso de tempo.
18.º Daí que o projecto de decisão tendo em vista a reposição pelos docentes de gratificações pagas voluntariamente pela SRE e DREER é ilegal, despropositado, desproporcionado e fere o princípio da estabilidade.
19.º Por outro lado, entendemos que o processamento das gratificações relativamente aos docentes em regime de acumulação é em qualquer caso legal.
20.º Salvo o devido respeito e melhor opinião, a respondente desde há muito que exerce efectivamente funções na educação e ensino especial de crianças e jovens.
21.º Até Outubro de
22.º A partir do mês de Novembro de 2003 até à presente data, verifica-se que o subsídio de especialização deixou de ser processado na folha de vencimentos.
23.º O não processamento de tal subsídio de especialização desde Novembro de 2003 constitui um prejuízo mensal superior a (euro) 100 provocado aos rendimentos da respondente.
24.º Do despacho recorrido parece surgir a ideia que não assiste à respondente o direito de receber a gratificação de especialização prevista no artigo 1.º do referido diploma.
25.º A respondente não exerce quaisquer outras actividades públicas em acumulação que lhe vedem o recebimento de tal gratificação, nos termos do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87.
26.º As únicas actividades públicas que exerce respeitam apenas à educação especial onde exerce efectivas funções nesta área de ensino especial e está integrada em equipa especial ou unidade de orientação educativa tal como determinam as alíneas a) e b) do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 232/87 de 11 de Junho.
27.º Perante isto a respondente tinha e tem o direito de recebimento da gratificação especial mensal prevista na lei, não se colocando qualquer questão relativamente ao direito à gratificação de itinerância como dúvidas há em relação a outros docentes.
28.º O legislador exige duas condições cumulativas para atribuição da gratificação mensal, a saber:
1 - Exercício efectivo de funções na educação e ensino especial.
2 - Integração em equipas especiais e ou em unidades de orientação educativa especial.
29.º O legislador não refere 'exercício efectivo de funções docentes' mas de 'funções na educação'.
30.º Perante isto a respondente reúne e sempre reuniu as condições de atribuição da gratificação mensal.
31.º Daí que, o cancelamento na sua atribuição e do processamento na folha de vencimentos é legalmente descabido.
32.º Sendo ínvia a intenção de reposição de algo que foi devidamente pago ao respondente por determinação superior da SRE e seus órgãos competentes.
33.º Assim, independentemente do «caso resolvido' ou da ilegalidade do acto da reposição das gratificações sub judice, o certo é que é de esperar que a Secretaria Regional da Educação, o Secretário Regional das Finanças e o próprio Governo Regional determine em qualquer caso a relevação da reposição das quantias.
34.º Por último, constata-se que o mapa de reposições não atende à prescrição estabelecida no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho.
35.º E a verdade é que tais gratificações pagas estão prescritas quanto à obrigação de reposição, prescrição que se invoca para todos os efeitos legais independentemente de tudo o que atrás se alegou.
Nestes termos,
Requer a V. Ex.ª se digne determinar a não reposição das gratificações de especialização e itinerância tal como constam do processo no projecto de decisão notificado.
[...]»
7 - O Exmo. Secretário Regional de Educação, em vez de dar uma resposta a cada um dos AA, docentes e defendentes, decidiu-se pelo acto administrativo ora impugnado.
B) Apreciação de direito:
Estamos perante um recurso para uniformização de jurisprudência, previsto no artigo 152.º do CPTA, que tem de ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido, e cujos requisitos de admissibilidade são:
Existir contradição entre acórdão do TCA e acórdão anterior do mesmo Tribunal ou do STA, ou entre acórdãos do STA, sobre a mesma questão fundamental de direito;
Ser a petição de recurso acompanhada de alegação na qual se identifiquem, de forma precisa e circunstanciada, os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada e a infracção imputada à decisão recorrida;
Não estar a orientação perfilhada no acórdão recorrido de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
A parte final do n.º 2 do preceito prevê um duplo ónus de alegação (dos aspectos de identidade que determinam a contradição e da infracção imputada à decisão recorrida), o que tem a ver com os dois juízos decisórios que o tribunal tem, em consequência, que emitir: um relativo à existência de contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito; outro, consequente a esse, e se ele for positivo, sobre o novo julgamento da causa (judicium rescisorium).
A propósito da exigida identidade da questão de direito, a jurisprudência do STA, designadamente do Pleno, vem de há muito reiterando, no domínio dos recursos por oposição de julgados previstos no artigo 24.º, alínea b), do ETAF de 1984 (cujos pressupostos coincidem, no essencial, com os do recurso aqui versado), mas igualmente já no domínio do CPTA, a exigência de identidade da situação de facto subjacente aos arestos em confronto, como suporte da identidade da questão de direito, sublinhando-se que não há oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respectivas decisões.
A identidade da questão de direito passa, necessariamente, pela identidade da questão de facto subjacente, na exacta medida em que aquela pressupõe que as situações de facto em que assentaram as soluções jurídicas contenham elementos que as identifiquem como «questões» merecedoras de tratamento jurídico semelhante.
Para Baptista Machado (1), «não é possível determinar a existência de um conflito de decisões sem uma referência bipolar, simultânea, às questões de direito e às situações da vida».
Segundo a referida jurisprudência, para que ocorra oposição ou contradição de julgados, "«é indispensável que haja identidade, semelhança ou igualdade substancial da situação de facto, não havendo oposição de julgados se as soluções divergentes tiverem sido determinadas, não pela diversa interpretação dada às mesmas normas jurídicas, mas pela diversidade das situações de facto sobre que recaíram» (Acórdão do Pleno de 15 de Outubro de 1999 - recurso n.º 42 436).
Resta referir que a circunstância de o artigo 152.º do CPTA utilizar o termo «contradição», em vez de «oposição», não significa, relativamente ao regime da LPTA, uma opção por um conceito técnico ou etimológico diverso.
Com efeito, e como se observou no Acórdão deste STA de 13 de Novembro de 2007 - recurso n.º 121/07, «seria absurdo entender que o legislador restringira os recursos para uniformização de jurisprudência aos casos de contradição entre proposições jurídicas fundamentais, excluindo desses mecanismos os casos - aliás, muito mais vulgares - de contrariedade entre tais proposições. Assim, o nome 'contradição' continua a designar o género lógico 'oposição', o qual, no plano judicativo do discurso, se divide em duas únicas espécies - em que as proposições são, ou reciprocamente contrárias, ou contraditórias».
A entidade recorrente identifica, na respectiva alegação, duas questões de direito sobre as quais entende existir contradição entre o acórdão recorrido e os acórdãos-fundamento indicados (um para cada questão): a da natureza jurídica dos actos de processamento de abonos aos funcionários públicos; e a da aplicabilidade à situação sub judice do artigo 141.º do CPA, face ao n.º 3 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, aditado pelo artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro.
Importa, pois, averiguar da existência real dessa contradição, o que implica o cotejo comparativo dos dois arestos em confronto, em ordem a saber se as proposições jurídicas neles emitidas acerca dessas questões, repousando em situações de facto idênticas, se mostram contrárias ou contraditórias entre si.
E, em caso afirmativo, julgar-se-á do mérito dessas questões, decidindo qual das pronúncias emitidas é juridicamente correcta, nela fazendo repousar a decisão do presente recurso jurisdicional.
1 - A primeira questão fundamental de direito sobre a qual se invoca terem sido proferidas decisões contraditórias é a que respeita à qualificação jurídica dos actos de processamento de vencimentos e outros abonos aos funcionários públicos, mais concretamente, a de saber se tais actos são verdadeiros actos administrativos ou meras operações materiais.
E trata-se, inequivocamente, de uma questão «fundamental», na justa medida em que a sua resolução, por si e como pressuposto necessário da apreciação da outra questão identificada (aplicabilidade do regime de revogação dos actos administrativos inválidos, constante do artigo 141.º do CPA), foi determinante para a emissão das pronúncias finais de ambos os processos.
Sobre tal matéria, constata-se que o acórdão sob recurso, invocando jurisprudência reiterada do STA, considera que, em princípio, «cada um dos actos de processamento de vencimentos e de outros abonos são verdadeiros actos administrativos que se vão sucessivamente firmando na ordem jurídica se não forem objecto de oportuna impugnação ou revogação», concluindo que «ao contrário do que sustenta a recorrente, existiu um acto administrativo (de processamento das gratificações em causa) que foi tacitamente revogado pelo aludido despacho n.º 86/2005 e com fundamento em erro jurídico e não em qualquer erro de cálculo ou material ostensivo».
Ou seja, ao contrário do que decidiu o acórdão fundamento (Acórdão do STA de 9 de Outubro de 1997 - recurso n.º 37 914), no qual se caracteriza os actos de processamento de vencimentos e abonos como «meras operações materiais», o acórdão aqui recorrido está em sintonia com a orientação jurisprudencial que pode considerar-se consolidada neste STA, segundo a qual os actos de processamento de vencimentos e outros abonos constituem verdadeiros actos administrativos, e não meras operações materiais, susceptíveis de se consolidarem na ordem jurídica como «casos decididos» se não forem objecto de atempada impugnação, na medida em que contenham uma definição voluntária e inovatória, por parte da Administração, da situação jurídica do funcionário abonado, relativamente ao processamento em determinado sentido e com determinado conteúdo (cf., por todos, os Acórdãos de 10 de Abril de 2008 (Pleno) - recurso n.º 544/2006, de 19 de Dezembro de 2007 - recurso n.º 899/07, de 28 de Novembro de 2007 - recurso n.º 414/07, de 6 de Dezembro de 2005 (Pleno) - recurso n.º 672/05, de 4 de Novembro de 2003 - recurso n.º 48 050, de 3 de Dezembro de 2002 - recurso n.º 42/02, de 19 de Março de 2002 - recurso n.º 48065, de 7 de Março de 2002 - recurso n.º 48 338, e de 26 de Fevereiro de 2002 - recurso n.º 48 281.
Este limite da caracterização dos actos de processamento de abonos como verdadeiros actos administrativos (definição inovatória), que o acórdão recorrido não põe em causa, resulta, na situação em apreço, da natureza dos abonos aqui processados.
Como resulta dos autos, os peticionantes, ora recorridos, celebraram com a Direcção Regional de Educação Especial e Reabilitação (DREER), do Governo Regional da Madeira, contratos de prestação de serviço em acumulação, com base no n.º 1 do artigo 9.º da Portaria n.º 169/91, para o exercício de funções docentes no âmbito da educação e ensino especial, e de funções de itinerância no âmbito do apoio a crianças e jovens com necessidades educativas especiais.
A partir de 1999, passou a
ser-lhes processada uma gratificação mensal, cuja atribuição está expressamente
prevista no artigo 1.º, n.os
Tais gratificações constituem pois um abono suplementar do vencimento normal, de processamento condicionado à verificação dos aludidos pressupostos, e apenas devido nos períodos de actividade lectiva, o que permite concluir que cada processamento constitui uma «definição voluntária e inovatória, por parte da Administração, da situação jurídica do funcionário abonado».
A orientação perfilhada pelo acórdão recorrido quanto a esta questão está, assim, de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
O que significa que, quanto a essa questão, falha o pressuposto de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no n.º 3 do artigo 152.º do CPTA, pelo que o recurso não é, nessa parte, admitido.
2 - Assente a caracterização dos actos de processamento das referidas gratificações como actos administrativos, importa então afrontar a outra questão fundamental de direito sobre a qual se invoca terem sido proferidas decisões contraditórias: aplicabilidade à situação sub judice do regime de revogação dos actos administrativos inválidos previsto no artigo 141.º do CPA, face ao disposto no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho.
E dir-se-á, desde já, que os arestos em confronto, perante situações de facto idênticas, e fazendo uso dos mesmos critérios jurídicos, emitiram sobre tal questão pronúncias opostas.
O acórdão recorrido, perante a factualidade exposta, e acompanhando o Acórdão do STA de 12 de Maio de 1996 - recurso n.º 36 163, decidiu:
«'[...] a prescrição reporta-se à exigibilidade dos créditos existentes a favor do Estado e, portanto, à possibilidade desses créditos serem cobrados ainda que coercivamente. Pelo contrário, a revogação dos actos administrativos insere-se no estrito plano da actividade jurídica da Administração e dos administrados no âmbito da relação jurídica administrativa.
Os fundamentos da prescrição e da regra geral da revogabilidade dos actos administrativos são, pois, inteiramente diversos. A prescrição envolve uma reacção contra a inércia e o desinteresse do titular do direito que deixa passar um apreciável intervalo de tempo sem exigir o cumprimento da dívida. A revogação justifica-se pela necessidade de ajustamento da acção administrativa à variação do interesse público ou, no caso de revogação de actos ilegais, à exigência de cumprimento do princípio da legalidade.
O prazo de revogação dos actos administrativos não pode deixar de ser o estabelecido na lei administrativa geral, assumindo aí relevância a distinção entre os actos constitutivos e não constitutivos de direitos. E não se vê razão para alterar esse critério legal quando estejam em causa remunerações de funcionários ou agentes administrativos'.
Não esteve subjacente ao espírito do legislador do Decreto-Lei n.º 155/92 pôr em causa o princípio do caso decidido ou do caso resolvido ou operar, no âmbito da aludida reposição, a revogação tácita do artigo 141.º do CPA; o citado artigo 40.º foi manifestamente concebido para a reposição de abonos ou pagamentos processados por erros de ordem material ou contabilística, v. g. de soma ou de cálculo, por natureza rectificáveis a todo o tempo, nos termos do artigo 148.º do CPA (cf. o citado Acórdão do Pleno de 29 de Abril de 1998).
Assim sendo, é indubitável que, ao contrário do que sustenta a recorrente, existiu um acto administrativo (de processamento das gratificações em causa) que foi tacitamente revogado pelo aludido despacho n.º 86/2005 e com fundamento em erro jurídico e não em qualquer erro de cálculo ou material ostensivos.
Portanto, a sentença recorrida, ao anular o referido despacho n.º 86/2005, não merece a censura que lhe é dirigida pela recorrente, devendo ser confirmada.»
Por seu lado, o acórdão fundamento (Acórdão do STA de 14 de Maio de 1996 - recurso n.º 39 403) - em que está em causa a ordem de reposição de quantia indevidamente recebida por um médico de um centro de saúde, em virtude de haver sido incorrectamente posicionado no 2.º escalão - decidiu o seguinte:
«A obrigação de repor as referidas quantias (resultante da integração indevida no 2.º escalão, quando o deveria ter sido no 1.º, como implicitamente reconhece o recorrente) durante o prazo de cinco anos, verifica-se mesmo no caso do seu processamento, como acto administrativo que é, se ter firmado na ordem jurídica como caso 'decidido' ou 'caso resolvido' ainda que o despacho que ordene a sua reposição importe revogação do anterior acto que decidiu a situação remuneratória em causa para além do prazo mais amplo do recurso contencioso - um ano previsto no n.º 1 do artigo 141.º do CPA.
Só o caso julgado, emergente de decisões dos tribunais, em princípio, não cede perante a lei que o atinja, não assim o 'caso decidido' ou o 'caso resolvido', face ao disposto no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, em que o próprio interesse público reclama a recuperação de quantias que indevidamente saíram dos cofres do Estado.»
É pois evidente, perante os segmentos decisórios transcritos, a existência de contradição entre os dois julgados.
O que de imediato nos impõe decidir qual a solução juridicamente correcta (se a do acórdão fundamento, reclamada pela entidade recorrente; se a do acórdão recorrido, que esta entidade diz violadora do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho).
A posição acolhida no acórdão recorrido (segundo a qual o regime de prescrição relativo à reposição nos cofres do Estado de quantias indevidamente recebidas, previsto no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, em nada interfere com o regime de revogação de actos administrativos estabelecido no artigo 141.º do CPA) tem sido repetidamente afirmada por este STA, como se pode ver dos Acórdãos do Pleno de 23 de Maio de 2006 - recurso n.º 1024/04, e de 6 de Dezembro de 2005 - recurso n.º672/05, e de 5 de Julho de 2005 - recurso n.º 159/04.
Deles se transcreve o seguinte trecho:
«Conforme este Supremo Tribunal repetidamente tem afirmado [...] o prazo prescricional de cinco anos, estabelecido no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, para a obrigatoriedade de reposição de quantias recebidas que devam entrar nos cofres do Estado, reporta-se exclusivamente à exigibilidade ou à possibilidade de cobrança de um crédito preexistente a favor do Estado e não à prévia definição jurídica da obrigação de repor, em nada interferindo, pois, com a regra geral da revogabilidade dos actos administrativos constitutivos de direitos.
Esta última insere-se no estrito plano da actividade jurídica da administração e dos administrados, no âmbito da relação jurídica administrativa, enquanto o regime da prescrição de créditos do Estado foi manifestamente concebido para a reposição de abonos ou pagamentos processados por erros de ordem material ou contabilística, nomeadamente, erros de cálculo.
'Os fundamentos da prescrição e da regra geral da revogabilidade dos actos administrativos são, pois, inteiramente diversos. A prescrição envolve uma reacção contra a inércia e desinteresse do titular do direito que deixa passar um apreciável intervalo de tempo sem exigir o cumprimento da dívida. A revogação justifica-se pela necessidade de ajustamento da acção administrativa à variação do interesse público ou, no caso de revogação de actos ilegais, à exigência do cumprimento do princípio da legalidade' (Acórdão do Pleno de 10 de Novembro de 1998, acima citado).
[...]
O que está, pois, em causa não é a exercitabilidade do direito à devolução de verbas (o que supõe um crédito preexistente) mas a existência da obrigação de repor, à luz da validade jurídica do acto administrativo que, ordenando a reposição, determina a alteração da remuneração definida por acto anterior, o que convoca a aplicação das normas que regulam a revogação dos actos administrativos constitutivos de direitos.
[...] Face ao exposto, impõe-se concluir que, ao invés do decidido no recurso contencioso, que o acórdão recorrido confirmou, não sendo aplicável ao caso o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, o acto administrativo contenciosamente impugnado violou o preceituado no artigo 141.º do CPA, por consubstanciar a revogação de actos processadores de vencimentos do recorrente após o decurso de prazo de um ano.»
Sucede, porém, que esta orientação jurisprudencial, bem como a tarefa de interpretação legal em que a mesma repousa, veio a ser posta em causa com a alteração da redacção do citado artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92.
É que nenhum dos citados arestos, todos eles posteriores a essa alteração legislativa, ponderou ou teve em conta a nova redacção do referido preceito e as consequências daí decorrentes para a solução da questão que nos ocupa.
Pelo que a aludida orientação jurisprudencial deverá naturalmente ser reponderada por este Pleno com a convocação desse novo elemento de ordem legal, não presente na elaboração das decisões anteriores, em ordem a saber se o mesmo é compatível com a dita orientação jurisprudencial, ou se, ao invés, ele determinará uma nova composição da questão jurídica presente e do juízo decisório a empreender.
Aliás, a sentença do TAF, confirmada pelo acórdão recorrido, transcreve, na sua fundamentação de direito, este artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92 apenas com dois números, ou seja, na sua redacção inicial, quando ao preceito já tinha sido aditado um n.º 3.
Vejamos então.
O artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, na sua redacção original, dispunha:
«Artigo 40.º
Prescrição
1 - A obrigatoriedade de reposição das quantias recebidas prescreve decorridos cinco anos após o seu recebimento.
2 - O decurso do prazo a que se refere o número anterior interrompe-se ou suspende-se por acção das causas gerais de interrupção ou suspensão da prescrição.»
O artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2005), que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2005, deu nova redacção a este preceito, introduzindo-lhe um n.º 3, de natureza interpretativa, nos seguintes termos:
«Artigo 77.º
Regime da administração financeira do Estado
O artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, passa a ter a seguinte redacção, tendo o n.º 3 ora introduzido natureza interpretativa:
'Artigo 40.º
1 - ...
2 - ...
3 - O disposto no n.º 1 não é prejudicado pelo estatuído pelo artigo 141.º do diploma aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro.'»
A este n.º 3 foi atribuída, pela própria lei que o introduziu, «natureza interpretativa», tratando-se pois de uma interpretação autêntica, do próprio legislador, que vem, por esta forma, fixar vinculativamente o alcance que, ab initio, deve ser atribuído ao preceito interpretado.
Como é sabido, a norma interpretativa integra-se na norma interpretada, retroagindo os seus efeitos ao início da vigência desta (artigo 13.º, n.º 1, do C. Civil), ou seja, «retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª Ed., anotação ao artigo 13.º).
E não se vê que outro alcance ou sentido normativo possa ter este n.º 3, introduzido pela Lei n.º 55-B/2004, a não ser o de que a previsão legal do n.º 1 - de que a obrigatoriedade de reposição nos cofres do Estado das quantias indevidamente recebidas só prescreve cinco anos após o seu recebimento - não é prejudicada ou condicionada pelo regime de revogação dos actos administrativos inválidos fixado no artigo 141.º do CPA (neste sentido, pode ver-se o Acórdão da 2.ª Subsecção do STA de 30 de Outubro de 2007 - recurso n.º 86/07).
Assim sendo, e contrariamente ao que foi decidido pelo acórdão recorrido, o impugnado despacho n.º 86/2005, da autoria do Secretário Regional da Educação da Região Autónoma da Madeira, não violou o artigo 141.º do CPA, assim procedendo, nesta parte, a alegação da entidade recorrente.
Decisão
Com os fundamentos expostos, acordam em:
a) Julgar procedente o recurso jurisdicional;
b) Anular o acórdão recorrido;
c) Julgar improcedente a acção administrativa especial a que os autos se reportam;
d) Uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
«O despacho que ordena a reposição nos cofres do Estado de quantias indevidamente recebidas, dentro dos cinco anos posteriores ao seu recebimento, ao abrigo do artigo 40.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, não viola o artigo 141.º do Código do Procedimento Administrativo, atento o disposto no n.º 3 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, preceito de natureza interpretativa introduzido pelo artigo 77.º da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro.»
Custas pelos autores, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, 5 UC e 8 UC, respectivamente no TAF, no TCA e neste Supremo Tribunal, em todos com procuradoria de 1/6.
Cumpra-se o disposto na segunda parte do n.º 4 do artigo 152.º do CPTA.
(1) Âmbito de Eficácia e Âmbito de Competência das Leis, p. 224.
Lisboa, 5 de Junho de 2008. - Luís Pais Borges (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Rosendo Dias José (Com a declaração que concordo com a solução e continuo a entender que o processamento de vencimento dos servidores públicos é acto jurídico, mas não de autoridade.) - Maria Angelina Domingues - João Manuel Belchior - Jorge Manuel Lopes de Sousa - Adérito da Conceição Salvador dos Santos - Rui Manuel Pires Ferreira Botelho - Jorge Artur Madeira dos Santos - António Bento São Pedro - António Políbio Ferreira Henriques - Fernanda Martins Xavier e Nunes - José António de Freitas Carvalho - Edmundo António Vasco Moscoso - Alberto Acácio de Sá Costa Reis (Vencido. Com efeito, se o acto de processamento é, como a jurisprudência deste Pleno tem afirmado, um acto administrativo a sua revogação com fundamento na sua ilegalidade tem de respeitar o prazo previsto no artigo 141.º do CPA. Sendo assim, independentemente do disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 155/92, é ilegal a reposição de quantias, ainda que ilegalmente processadas, se o acto de revogação excede aquele prazo.)